quarta-feira, abril 05, 2006


Agora eu sei o que fazer.

Passei a primeira década como o vento. Sem direção. Sem forma. Sem ser notado. Mas então ele me segurou pelo braço quando tentei tirar o dinheiro dele. Mentira. Não vou romantizar a história. Ele me bateu sem propósito e perguntou o que um rato fazia próximo a sua casa tão limpa. Eu respondi e ele me bateu novamente. E toda vez que eu falava. Aprendi a não falar, por medo. Ele me tornou seu escravo. Fazia tudo o que ele queria. Humilhava-me perante sua filha. Eu apanhava também quando olhava para ela. Chamava por mim com nomes obscenos e me batia sempre que algo saísse do planejado, mesmo que milimétricamente. Eu tinha que tomar dois banhos por dia para não ser chamado de fedido. Se eu me sujasse limpando sua casa, eu apanhava e era jogado na água fria. Então à noite chegava e eu jantava. Comida quente e muito saborosa. Eu podia aguentar o dia todo de sofrimento somente para chegar à tocar naquela comida. Não entendia por que ele fazia aquilo. Não sabia o que pensar. Eu era jovem e inocente.

Um dia percebi que não conversávamos mais. Apenas uma troca de olhares era suficiente para que eu entendesse seus desejos. Eu apanhava se não obedecesse. Mas as surras não doíam mais. Algumas vezes eu nem as sentia. Quando ele percebeu isto, parou de bater e fez o sinal para que eu o acompanhasse. Deslizou para o lado a porta de um dos cômodos onde eu não era autorizado a entrar. Então começou a dançar, lá no centro. Achei graça e sorri. Só acordei na manhã seguinte. Não sei o que me atingiu, mas foi rápido. Muito rápido. Ele insistiu mas dessa vez eu não ri. Imitei, como era a ordem implícita. Eu era jovem e inocente.

Hoje faz duas décadas que eu o conheci. Vinte anos de disciplina, entre razão e emoção e corpo e mente. Hoje eu ví pela primeira vez uma lágrima escorrer de seus olhos. Nem quando me casei com sua filha, em data tão alegre e festiva, ele chorou. Minha princesa. Meu prêmio. Meu amor. Íamos ter um filho juntos. Hoje. Justo hoje. QUando voltei para casa com meu senhor após a meditação matinal. Deslizei a porta de entrada para o lado e lá estava ela. O amor da minha vida. Minha única mulher. Fixada na parede com uma espada atravessando seu abdômen. Presa pelos pulsos com cordas ásperas. Adornando o desenho da serpente na parede, feito com seu próprio sangue. Teve os olhos arrancados em sinônimo de que permanecêssemos cegos ao fato. Hoje. Foi quando ele deixou uma lágrima cair. Tenho certeza que foi apenas uma, acoando ensurdecedora no assoalho de madeira, misturando-se ao barulho do bambuzal raivoso ao vento. Talvez meu senhor devia ter pago aqueles nobres, mas tenho certeza que fez o que era certo. Provavelmente o fez também hoje, quando eu olhei diretamente em seus olhos pela primeira vez depois de tanto tempo. Quando ele viu em mim a sombra de seu ódio. Ele acenou com a cabeça, concedendo permissão.

Anos e anos seguindo seus passos, fazendo somente o que me era ordenado. Não hoje. Caminho por esta estrada acompanhado dos quatro ventos, da espada e da doce imagem dela em minha memória pois assim eu decidi. Sem ódio, sem mágoa, sem saudade. Apenas propósito. E devo tudo isso à ela, meu eterno amor. Não sei como será viver sem seu abraço noturno, seu olhar de carinho, seu cuidado comigo. Mas isso é no futuro.

Agora, eu sei o que fazer.

5 comentários:

Anônimo disse...

Ae meninão, demorou pra começar a escrever aqueles textos muito locos...

Anônimo disse...

Honey, pra variar já falei pra vc parar de comer antes de ir dormir... vc pira...!
Como sempre impecável... forte... viceral... um tanto quanto demais pra mim neste instante, mas fico feliz em saber que finalmente você volta a exercitar esta mente fértil e produzir frutos, bons outros nem tanto, mas a produzir!
Parábéns !
C.

Anônimo disse...

Gostei muito, mas acho que faltou dizer a data e o local, pois imagina um cara saindo na Paulista com uma espada na cintura...
Além de correr o risco de ter que se explicar na delegacia, se arrumar briga com alguem pode virar deposito de chumbo.

Anônimo disse...

Muito bom cara.
Talvez empolgação em excesso possa prejudicar o andamento, mas a coisa toda possui velocidade e...bixo. é incrível como tua cabeça vai longe.
adorei.

Lady disse...
Este comentário foi removido pelo autor.