domingo, novembro 05, 2006

No banheiro, havia um espelho. A verdade era que Amelie não sabia realmente se o espelho um dia estivera lá; tinha uma lembrança certa disso, mas não a ponto de discernir a entre fantasia e realidade.

Trinta anos. Trinta anos passados, três décadas perdidas. Sim, ela poderia se considerar uma mulher de sorte. Formou-se na melhor faculdade, seguiu carreira acadêmica, defendeu teses e mais teses com potencial para um dia mudar o mundo. Hoje, diretora da maior empresa do ramo de engenharia genética na Suíça, com os melhores carros na garagem, incontáveis valores em imóveis ao redor do mundo, uma biblioteca em best-sellers lançados, fãs. Mas afinal, de que tudo isso vale uma vez que nem pode se lembrar se uma porcaria de espelho estava ou não pendurado na parede?!

James foi o melhor, dos amantes claro. Péssima companhia, antagônico, completamente inábil com as palavras, porém sabia como fazer uma mulher gozar como nenhum outro. O tipo do homem que é melhor calado. Não durou mais de dois meses. Com Scott não foi diferente, apesar de sua eloqüência ser um ponto indiscutível. Inteligência sempre lhe despertou mais desejo do que machos corpulentos e seus pêlos. Pensou mesmo que daria certo com Doyle, mas foi outro fracasso. E quando ela se permitiu amar de novo, quando estava tudo bem com Ciryl, quando já havia feito até mesmo a cafonice de organizar um casamento na igreja, o sangue mais uma vez desceu pelas suas pernas. Um dia depois ela encontraria em seu travesseiro um bilhete. Um sonho arruinado por um pedaço de papel e tinta de caneta barata. Ao final de alguns anos ela estava acostumada e já não doía mais.

Adotou um filho. Dois. Três. Todos cresceram e foram embora logo na adolescência. Estava sozinha novamente. Nenhum se importou de verdade com a mãe, por não aceitarem o sonho que ela tinha de gerar um filho em suas entranhas. Seriam eles menos importantes para ela? Amelie se culpava pelo desafeto de seus filhos, e deixaria para eles tudo o que pudesse em quantias de dinheiro, para tentar suprir a presença que faltou. Só o amor não bastava. E ela tinha consciência de ter sido injusta com eles por diversas vezes, e sendo honesta, se arrependia de não ter dado às suas crianças amor de mãe. Tratou-os como amigos, não como filhos.
Talvez a sua decisão de voltar atrás tenha sido por se sentir derrotada - cruel demais pensar assim, mas ela era adulta o suficiente para reconhecer suas próprias limitações. No auge de seus quarenta e nove anos, ela já sabia que ter filhos seria impossível. Todo o trabalho de uma vida em busca de algo que tantas pessoas rejeitam. Essas pessoas teriam alma? Se sim, Amelie realmente teria motivos para não acreditar em nenhum Deus, pois nenhum seria digno de fé se presenteasse com alma uma mãe que deixa seu filho à própria sorte. Uma criatura lânguida e indefesa, um pedaço de seu próprio corpo. Por qual razão essa felicidade simples lhe fora negada? Alma? Isso é coisa para os que erram conscientemente o tempo todo. Buscar iluminação no leito da morte é muito fácil. Difícil é ter uma vida digna e honrada e ainda assim ter que conviver com o fato de ser estéril.

A velha casa continuava lá, mas não como a havia deixado. Os móveis eram em sua maioria os mesmos. Nada de espelho no banheiro, mas alegrou-se ao ver a mancha oval no papel de parede denunciando sua remota presença acima da pia. A lembrança era sua única âncora contra o desespero. O atual proprietário a recebeu com muita cordialidade, e lhe mostrou cada quarto da casa em que havia nascido, com certa empolgação nos olhos. A mesma casa, as mesmas flores no jardim descuidado, o mesmo pomar e até alguns resquícios do que fora uma cerca feita pelo seu pai. Tudo lá, um pouco mais descuidado e velho. Mas faltava algum detalhe. Seria melhor ter guardado apenas a lembrança da infância, pois percebeu que a casa era muito menor e mais pobre do que imaginava. Não sofreu como pensou que sofreria, a lembrança da morte dos pais. Alzheimer. Não mais a revoltava. Não tinha certeza se ainda sabia como sentir as coisas, tamanha a sua convivência em meio a fetos abortados e cadáveres expostos. Amelie havia esquecido de como sentia falta do Sol da manhã. Deixou as férias se acumularem até que não existissem mais ou não precisasse mais delas, o corpo e a mente se acostumaram ao stress e não mais se entregavam à fadiga.

Família, ela não tinha. Se tivesse, conheceria, pois visitou cada um dos cartórios conhecidos da região em que nasceu; contratou até mesmo historiadores que estudassem sua árvore genealógica e a origem do sobrenome. Nada. Do início ao fim do recomeço inexistente. O mundo não era interminável, nem o tempo infinito, porque para ela acabava ali. Para ela e para os seus. De alma e ventre secos. Doce fardo a responsabilidade de não gerar herdeiros. A família sumiria do mapa, e em poucos anos da história. Mas tudo bem, pois não havia ficado ninguém mesmo que pudesse se importar ou lembrar dessa história com amargura. É, menos pior que fosse assim. Se a genética trouxesse a ela um filho como ela mesma trouxe a muitas mulheres, essa criança passaria pela mesma dor: o defeito era congênito e de gene dominante. O sofrimento terminaria ali, e nenhum filho seu passaria pela dor incomensurável que é trazida pela solidão. Se terminasse, seria uma bênção. Talvez realmente existissem Deuses.

Escrito por Brendan Orin