quarta-feira, junho 28, 2006


O primeiro soco me atingiu como um caminhão de cimento em alta velocidade. Deu para ouvir o estalo do maxilar trincando a duas quadras de distância. O segundo foi bem mais leve, pelo menos. Ou eu que estava já com o rosto todo amortecido. Nem vi todos os outros subsequentes. O mundo escureceu, a calçada tornou-se minha melhor amiga e o som ambiente passou a ser uma sinfonia afônica sem ritmo. Depois de alguns minutos recobrei a consciência, mas percebi que ainda estava no breu, em algum lugar muito escuro. Levantei-me, extremamente disposto, e andei, para lugar algum, numa direção que eu jurava que era o norte. Por que todo mundo vai pro norte quando está perdido? Enfim, andei por um bom tempo, tentando raciocinar onde eu estava. Estava frio, isso sim. Bem frio. E bem escuro. Normalmente eu estaria desesperado pela situação, mas eu não estava e não sabia explicar por que. Mesmo quando um brilho forte apareceu ao longe e uma voz vinda do além proferiu "Vá para a luz!" eu não desesperei. Fiquei puto, mas não entrei em pânico. Puto porque eu comecei a perceber que eu tinha morrido. Porra, me mataram na porrada. Que merda. Jeito idiota de morrer. Por causa de uma briga idiota num bar idiota sobre uma mina idiota. E o legal era a sensação de que estava tudo ok. Achei que quando eu fosse mesmo para a casa do chapéu eu fosse ficar doido. Mas nem era bem assim. Era uma sensação bacana até. De liberdade sabe. Sair da rotina, não precisar trabalhar novamente, essas coisas todas.

Parei no lugar. Virei de costas para a luz e comecei a caminhar no sentido contrário. Na boa, morrer o cacete. O cara bateu na minha cara. Vou achar aquele desgraçado e...
-E o que? Bater nele? - escutei, em uma deliciosa voz feminina - Vingar-se por um propósito incoerente?
-Minha família vai sentir minha falta. - disse eu, para o nada, parado no lugar - Preciso voltar.
-Você não tem família para cuidar. Você tem no máximo um punhado de amigos que não lhe são fiéis.
-Eu trabalho amanhã. Meu chefe vai ficar puto se eu não for.
-Você entrega cartão em estacionamento de supermercado. Ninguém vai sentir sua falta por mais de dez minutos.
-Eu esqueci o gás ligado. Uma faísca e BUM! pra vizinhança.
-Tudo o que você tem na sua casa é um forno elétrico e um microondas.
-Ahhh... foda-se. Se eu continuar andando você vai me parar?
-Claro que não. Você morreu. Tem toda a liberdade do mundo para ir para onde quiser.
-Beleza, então até mais. - e continuei andando para longe de lá.

Andei muito. Ao ponto de não mais ver a luz. E mesmo ainda estando tudo escuro, certos pontos no breu me davam prazer, alguns outros tristeza, como se eu estivesse vagando pelo mundo mas não conseguisse enxergá-lo. Acho que eu andei pra lá e pra cá por dias. Meses. Anos. Nunca mais encontrei a maldita luz. Tudo por causa da vingança besta que eu achei que podia ter. Quando eu dei por mim e finalmente percebi o que tinha acontecido, fiquei irado! Sem nome, sem rosto e sem fazer a menor idéia de onde eu tinha parado meu carro.


quarta-feira, junho 14, 2006


Cristina conheceu Roberto na locadora e por mais esquisito que pareça eles começaram a namorar e casaram ano passado, na igrejinha da esquina do bairro onde mora a Roberta, que foi namorada do Roberto há uns dez anos atrás. Eles eram um casal muito bacana, Roberta e Roberto, todo mundo brincava com o casal, dizendo que eles podiam montar dupla sertaneja. Quem mais zoava era o Marcos, irmão de Roberta, que trabalhava com a Angela, a mesma que tinha ficado super bêbada com a vodka que a Laura trouxe na festa da Adelaide, amiga dela da faculdade, e acabou ficando com o Paulão que todo mundo falava que beijava mal pra caramba, pior que o Nelson. Mas não é pra menos, pois o cara apesar de bancar o gostosão, só tinha ficado com uma menina na vida dele inteira, a Maira, que acabou se assumindo lésbica alguns meses depois, no dia seguinte de ter trocado uns beijos comigo. O engraçado é que eu só contei pro meu melhor amigo, o Helio, e o porra contou pra todo mundo por que achava que duas meninas juntas era, nas palavras dele, "o maior tesão". Idiota! Assim que caiu nos ouvidos da cretina da Cibele ela ligou imediatamente para aquele amigo do Zé, primo da Adelaide, que era super afim de ver duas meninas juntas e veio todo cheio que querer ser o descolado pra cima da gente. Ainda bem que ninguém deu muita bola e o caso abafou, também por que ninguém se metia a besta com a nova namorada da Maira, uma doida de cabelo pink e cheia dos piercings que todo mundo chamava de Natasha. Mas ninguém na verdade sabia o nome dela. Devia ser Emengarda ou algo ridículo assim, pois fala sério aquele cabelo! Mas super engraçado foi quando a gente descobriu que a Natasha tinha trabalhado a muito tempo na locadora do seu Jorge, pai do roberto. Pegamos a foto dela e pedimos pra sobrinha do Paulão, a Viviane, que tinha ficado super amiga da Angela depois do ocorrido com o cara, colocar a foto antiga dela toda comportada de aparelho no site do Carlos, amigo dela, que tinha um endereço super legal que todo mundo acessava. Até que o elo mais fraco da corrente, o Edgar, padrinho de casamento da Michele, namorada do Carlos, que tinha conhecido a Maira na balada, deu o endereço pra ela e falou que achava sacanagem, na verdade foi filho da puta pois ele queria catar ela depois de ter tentado ficar comigo e com a Clau e não conseguido nada. Mancada super grande pois o inferno comeu solto depois disso: a Natasha catou uma faca da cozinha do Renato, e quis dar uma de porra louca pra cima da Viviane, achando que a idéia era dela e quando o Paulão foi tomar da mão dela, ela cortou o cara. O bicho ficou louco de raiva e deu um soco na cara da menina fazendo ela desmaiar na frente da boate que o Felipe frequentava! A Maíra ficou possessa e já foi aloprar o cara, chamando a Angela de vagabunda no processo e arrumando uma puta briga com o Marcos que pagava um super pau pra ela e foi defender, que nem quando Fabricio defendeu a Katia. O pior foi quando a Adelaide, que tava só de passagem foi pega pra cristo no meio do pega e levou uma garrafada no rosto. Ficou horrível. Tadinha. O foda foi ela querer se vingar e bater de leve com o carro na menina e acertou a menina errada: a Roberta, ex nora do seu Jorge, e mandou ela pro hospital. Quando ela chegou no hospital ela ainda deu escândalo, gritando que a Dra. Cristina, que trabalhava com a Fabi, tinha roubado dela o único amor da vida dela. Deixou a doutora super nervosa, tanto que ela errou a dose de remédio calmante pra guria e pos a coitada em coma. Robertão achou que ela tinha feito de propósito e separou dela, dizendo que ela tinha surtado. Poxa, super chato. Eles tinham sido casados ano passado, pelo padre Mauricio, na igrejinha da esquina, do lado da livraria onde eu comprei meu primeiro livro do Bocage.

Roberto, Adelaide, Paulo, Maira, Mauricio, José, Natasha, Jorge, Fabricio, Carlos, Edgar, Michele, Renato, Laura, Marcos, Cristina, Viviane, Fabiana, Angela, Roberta, Cibele, Patrícia, Helio, Felipe, Nelson, Claudete, Katia. Todos nós. Retratos coincidentes na galeria caótica do mundo.


quarta-feira, junho 07, 2006


Verborragia. Hemorragia mental.

Nada em volta faz sentido quando tudo parece se encaixar perfeitamente, dente por dente, na engrenagem repetitiva da humanidade. Assistindo ela se desgastar e ruir sob o poder implacável do tempo, como qualquer outra máquina, fadada à destruição e futura reposição. Reciclagem. Restabelecendo-se por conta própria. Nada faz sentido. As intenções e vontades humanas não fazem sentido. Quando você é rico e tem de tudo sua alma ainda pede mais. Quando você é pobre se pergunta por quê. E na corda bamba entre os dois extremos, assistindo alguns tombarem e outros acenderem violentamente você imagina o quanto o mundo é perversamente surreal. Estamos todos mortos talvez. Talvez isso seja na realidade o inferno, onde todos têm de trabalhar cinco ou seis dias para se divertir e descansar um. Onde nos sentimos sempre obsevados pela intangível figura paterna criada pela religião. A figura que irá nos punir se nós fizermos o que desejamos e não o que ela permite. Um mundo de regras, sem a harmonia natural da natureza. Não somos naturais. Não somos bichos. Não fazemos parte do mesmo mundo que o resto dos seres vivos. Somos os mais frágeis, os mais covardes e temos ainda a desvantagem de saber disso.

Cada vez mais sangue escorre das páginas do jornal, das palavras do radialista, da tela da TV. Chamam isso de notícia quando deveriam chamar de apelo, de aviso, um mundo decadente gritando para ser salvo enquanto insistem em destruí-lo. Nós. Humanos vivendo no fio da navalha esperando a hora onde seremos resgatados deste pesadelo repetitivo do dia-a-dia, desta rotina viciosa que não nos deixa viver. Soneto luminoso na página esférica da humanidade.