Já eram mais de uma da manhã quando ela resolve parar para ver uma vitrine. Nem lembro qual loja era. Disse qualquer coisa com as palavras "cerveja" e "duas" na mesma frase, fazendo o gesto corriqueiro com a mão, gritando um "opa!" e se equilibrando de volta em cima do salto. Eu fiz sinal com a cabeça e entrei na primeira porta acesa que vi, na esperança embaçada de comprar mais duas latas. Porra, terça feira e a mulher me fazia beber daquele jeito. Tirei 20 paus da carteira e pedi um par de alegrias momentâneas envoltas em alumínio, que contribuiríam certamente para meu desejo de eutanásia no dia seguinte. O truculento barman daquela pocilga medieval codinomeada padaria na Rua Augusta pegou meu dinheiro como se fosse um cafetão decepcionado com meu rendimento diário. Nem prestei atenção nos tipos mais do que esquisitos ao meu redor, pois primeiro eu estava bêbado, segundo eu estava admirando o pôster-calendário da Rita Cadillac, datado de 1986, pregado no azulejo azul-gordura da parede e terceiro pois eu tenho ciência que aquela rua é mesmo um para-raio de gente estranha. Porém, fui acometido pela repentina urgência causada pela ingestão de dois litros de cerveja e me senti na obrigação de perguntar para o peludo chapeiro de regata que fritava um ovo cabeludo na placa tórrida de aço coberto de especiarias indiscerníveis, que ele chamava de local de trabalho, onde era o banheiro. Ele apontou para os fundos de tal masmorra com a própria espátula, num movimento rude e veloz. Lembrei de Sir Isaac Newton quando pela Lei da Inércia um resto de ovo picado escorregou de tal instrumento de direção e fez sua trajetória parabólica, porém invisível, até o prato de um pobre descuidado, que escrevia em seu celular uma mensagem de texto, aterrisando harmonicamente entre o hambúrguer e um pedaço de batata frita.
No cubículo apertado, baixei o zíper cuidadosamente, pegando aquilo que encntrei na cueca com cuidado e puxando para fora somente os mínimos centímetros necessários para não sofrer da necessidade de trocar de meias, chocado em silêncio desgostoso pela falta de higiene do ambiente. Enquanto meu corpo produzia o arco líquido que atingia a medonha pasta escura dentro do vaso, eu tinha os olhos acorrentados a um par de insetos marrons grandes que discutiam a relação numa fresta da janela opaca, sentindo o pulmão começar a doer por segurar o oxigênio preso em si por tanto tempo. Soltei o ar devagar, amaldiçoando a quantidade de cerveja ingerida, pois eu iria ter de respirar mais cedo do que eu desejava, ou melhor, do que seria salutar para minha integridade física. Felizmente, uma distinta garota que trajava apenas um trio de peças de roupa em toda a extensão de seu corpo tatuado, fez-me recordar que eu não havia trancado a porta, abrindo-a com convicção. A lufada de ar gerada por tal afronta à privacidade desamparada, permitiu que eu respirasse fundo uma vez mais, meneando a cabeça para o lado, logo em seguida, tentando em gesto mudo explicar para tal invasora que o banheiro estava ocupado. Ela fez um gesto confortável de desdém impaciente, ao fechar a porta de sopetão, murmurando palavras que se assemelhavam à um advérbio de intensidade muito comum e ao alvo de minha incontingência urinária. Então possuidor de mais alguns preciosos segundos de oxigênio, teria me demorado mais para apreciar a completa desenvoltura de minha vontade fisiológica, caso não tivesse voltado o olhar para a janela e reparado em pânico doméstico, que o casal de tijolos voadores não estava mais na beirada da janela. A expressão masculina "não adianta chacoalhar que o último pingo é da cueca" fez-se literal em demasia, devido ao súbito movimento de "aperta-balança-guarda" que a seguiu. Retornei ao balcão de tal espelunca, zigue-zagueando pelas pessoas que sorriam ao admirarem minha camisa branca de micro-fibra gentilmente se expondo através da braguilha aberta de minhas calças pretas. Corrigi tal engano fashion ao mesmo tempo que agarrei as latas com uma mão só e peguei os dez reais de troco que o halterofilístico atendente se dispôs a me entregar.
Mas foi só quando eu coloquei os pés na calçada que eu percebi a tamanha asneira vitalícia que eu estava fazendo. Ao correr os olhos pela beldade imprevista sentada na calçada, esperando entediada sua latinha de cerveja, em plena semana de trabalho, sendo uma porra-louca impulsiva e espontânea como nunca fora. Afinal, nos conhecemos casualmente há tanto tempo, esta era apenas a primeira vez que saíamos juntos, vai saber por quê. Eu não tinha certeza que eu queria ela para mim, correndo meu pensamento em quando eu iria dizer para ela que só desejava uma noite casual, mas que jamais idealizaria ferir seus sentimentos. Fui interrompido no meio de uma frase auto-explicativa por uma boca maculada de cigarros de menta, presa a um corpo que agarrava meu casaco para se levantar. Desgrudou os lábios umedecidos dos meus, arrancou à força uma lata gélida da minha mão, abriu-a com vontade, descascando o esmalte escuro das unhas, virou um demorado gole garganta à baixo e me disse baixinho: "Dorme comigo hoje."
Eu dormi. Eu durmo. Eu dormirei.
7 comentários:
obrigada pela visita!
em "O Carnaval e o celular"
venho te visitar aqui também a partir de agora ! ; )
Augusta me traz lembranças de um tempo melhor..!
Senti saudade de ler vc!
Caralho!!! Puta epopéia pra falar que quer dar uma trepadinha!
E ainda por cima, você deve ter broxado e batido uma vunheta de vêvado antes de dormir...
Ahahahaha como eu curto essa forma de descrever as coisas nos seus detalhes !!! Realmente nos transporta e nos faz viver a situaçao. Cara, até senti o "fedor" do maldito banheiro !!!
Como cê tá cara?
Abraçao Marcelo Jul.
Postar um comentário