terça-feira, abril 25, 2006


Ele ficou confuso quando ela lhe entregou o bilhete e sumiu no meio da multidão, desaparecendo enquanto ele olhava o estranho papel dobrado. Quem era ela? O cabelo era familiar, mas sua voz dizendo: "Não pare. Mova-se!" soou completamente nova. Sim, ela era muito bonita. Bonita estilo modelo de lingerie. Saiu imediatamente do meio da calçada e segurou a pasta entre as pernas, usando as duas mãos para desdobrar o bilhete. Leu devagar, decifrando a letra corrida. Espantou-se. Aquilo não podia ser verdade! Tal situação nunca ocorrera com o homem de vida simples que ele era. Na verdade aquilo só acontece em filmes! Colocou rapidamente o bilhete no bolso do casaco e correu, esbarrando em todo mundo, largando a pasta alí mesmo no canto da calçada.

Direita ou esquerda? Ele precisava encontrá-la! Se fosse verdade o que estava escrito, aquilo podia mudar sua vida por completo! Uma guinada selvagem do destino que muitas pessoas não percebem quando acontece. Ou não tomam iniciativa e a oportunidade passa. Direita ou esquerda?! Pensa ele rápido quando chega na esquina. Algo em seu estômago grita esquerda mas o longo penteado reluzente que passa de relance à sua direita o obriga a seguir por aquele caminho. Será que ela entrou na danceteria de fachada neon no final da rua? Provável. O perfume dela entrou pelo menos. E ele entra também. Paga a entrada e vai para a escuridão intermitente da pista. Em sua ansiedade instintiva, tenta olhar para toda e qualquer pessoa lá dentro. Mas são muitas. Não existe possibilidade de encontrá-la. Quando tudo parece perdido, o perfume dela acerta seu rosto como um tapa. Imediatamente ele vira para o lado, a tempo de enxergar a porta do banheiro unisex se fechando. Desvia de mais um punhado de pessoas e passa apertado entre as mesas de pedra para chegar lá, mas é barrado, tendo sua cintura firmemente segura por um outro homem, grande, musculoso e careca. Ele olha bravo para seu novo obstáculo e se espanta com o tamanho do rapaz. "Hey! O que você quer cara?!" pergunta áspero. "Você está sozinho, gato?" responde o outro. "Sai fora! Não curto homem!" Grita ele, se desvincilhando do rapaz e voltando-se novamente para o banheiro.

Mal a porta bate atrás dele e ele já se pergunta por que o banheiro tinha que ser tão grande!? Tinha umas trinta pessoas lá dentro e ainda mais entrando e saindo. Maldição! Onde está ela!? Eu preciso encontrá-la! Pensa ele. Pega novamente o bilhete em seu bolso e torna a lê-lo, desacreditando em sua mensagem. Morde a ponta do papel e percebe que está passando por uma severa crise de ansiedade desesperadora. Daí ele percebe um par de pés solitários sob a portinhola de um dos toaletes. Aproxima-se dois passos e sente aquele perfume. Sem perguntar nada, empurra a porta e lá está ela. Impecável. Maravilhosa. Seu rosto é o rosto que anjos devem ter. Entra sem dizer uma palavra e beija sua boca, insandecido, borrando seu batom e colocando as mãos por baixo de sua saia. Beija seu pescoço enquanto sente o calor molhado nos dedos. Esfrega a língua no céu da sua boca e arranha suas costas, fazendo ela gemer baixinho. Por que o bilhete, afinal? Qual era a mensagem subliminar alí? Não podia ser verdade o que parecia!

Alguém bate forte na porta, duas vezes, mas ele não liga. Tudo o que ele quer é viver naquele paraíso de mulher. Que rasguem seu registro geral pois ele não quer mais voltar para o mundo. E ela agradece, baixinho, sussurrando em seu ouvido. E eles se beijam mais uma vez. E ela fecha os olhos e seu corpo amolece, sentando no vaso sanitário imundo, seu vestido embebido em sangue. Ele respira fundo e tapa a própria boca para não gritar. Quando olha para trás percebe os dois pequenos buracos na porta. Percebe pessoas gritando lá fora. Percebe a visão anuviar. Percebe que um anjo veio lhe buscar.


Neurose - do Gr. neûron, nervo
s. f., -- perturbação mental ou emocional, cujos sintomas se manifestam por um comportamento obsessivo, tal como raiva excessiva, medo, ansiedade ou ódio sem razão aparente.


Perturbada o cacete!
Queria viver vida de balada, só isso. Pois cada vez que eu saio só encontro motivos para não ir trabalhar no dia seguinte. Impossível não beber alguma coisa para acompanhar o entorpecimento emocional que a música causa. Daí no meio daquele bando de imbecil que vem me xavecar sempre aparece algum que presta. Beijos diversos depois e muita música e muita bebida e muita diversão chega a hora de ir embora, dormir duas horas, tomar aquele banho gelado para tentar deixar uns dois ou três neurônios ativos e ir pro trabalho. Olhar pra cara daquele povo péssimo, mal humorado, que odeia a própria existência mas não faz porra nenhuma pra mudar. Odeio todo mundo lá. Principalmente o idiota do meu chefe que acha que é o bambambam e fica olhando toda mulher que passa de saia na frente da baia dele. Tipo, acorda! Se liga! Se eu der bola pra você o que você vai fazer? Rolar e dormir em vinte minutos? Que saco! É que nem cachorro correndo atrás de carro: quando alcança faz o quê?! Nada! Não que todos eles tenham feito algo contra mim, mas como me irrita essa galera com suas rotininhas padrão e nada de interessante pra contar. Odeio todos eles. Odeio o ócio, e principalmente a ociedade inerente dos rotineiros.

Sabe? Queria um homem de chocolate. Seria um adicional interessante ao hobby de roer unhas e passar a mão no cabelo. Não por motivos específicos, só queria um. Morro de medo de morrer sozinha. Tenho síndrome de Peter Pan e acho isso legal. Envelhecer suck! Por exemplo acabou a balada. Fala sério, mulher de mais de quarenta dançando é uma "tia doida" na pista. Ridículo. Total. Inclusive os homens precisam fazer alguma coisa a respeito da própria imagem. Boné ou toca + bermuda + camiseta de dez reais não rola. Sinto pena do ego feminino daquelas que caem nesse tipo de desespero. Esse tipo de embalagem já mostra a completa inadimplência intelectual. Nada vai vir de bom dalí. O máximo que você pode esperar é um "Fala garota!" em substituição pelo usual "E aí mina?". Patético. Odeio frases feitas, odeio fim de balada. Vou morar num daqueles países que a noite dura 3 meses. Isso sim é um after hour. Daí os próximos três eu passo dormindo pra me recuperar. Melhor do que ficar sentada nessa mesa estúpida olhando prum computador estúpido fazendo coisas estúpidas para conseguir uma miséria estúpida que paga a balada. Não vejo a hora de dar cinco horas e cair fora daqui. Daí não vejo a hora de chegar quinta pra cair na gandaia pública e sexta pra alguma festa particular. Pra que esse monte de mulher compra roupa se não sai de casa? Pra ficar bonita pro namorado!? Se liga. Mentira! Mulher se faz bonita pro mundo, nunca prum cara só! Mulher mesmo não dá pra ninguém a não ser pra ela mesma. Dá oportunidade de intercurso. hehe.

To pirando a cada dia que passa com essa sequência de asneira que eu escuto sair da minha boca. Mergulhando cada vez mais fundo num lago amplo de hipocrisia e mentira atrás de mentira. Desse mundo merda que todo mundo vive cheio de violência e tragédia na TV, jornal, enfim, na mídia toda. Encher a cara e esquecer do mundo. Viver no intervalo de uma batida eletrônica. Não ver a hora. Não vejo a hora. Digita, linda, digita que o tempo passa. E entre uma violenta mudança de humor a cada hora, pensa em sexo, pensa em música, pensa em roupa, pensa em vida. Pois o mundo não tá nem aí pra você se você estiver aí pro mundo.

Written By: Verônica Prata

quarta-feira, abril 12, 2006

-...é que nem batata doce. Eu não entendo batata doce.
-Huh? Como assim você não entende batata doce? É uma batata, doce. Ponto.
-Bicho, batata é batata. Batata doce não tem gosto de batata. Portanto, não é batata. Por exemplo, Baked Potato tem gosto de batata.
-Porra, claro! Baked Potato é Batata Assada em inglês, sendo assim, Batata Assada tem que ter gosto de batata!!
-Lógico que não. Batata doce não tem gosto de batata frita e chama batata também.
-Cacete, por que batata doce é um TIPO de batata e não um modo de preparo!! Batata assada e batata frita são a mesma batata preparadas de forma diferente.
-Mas aí você me dá razão que batata doce é diferente de batata normal. Sendo assim, batata doce não é batata mas chama batata pois ninguém bolou um nome praquela porra.
-Caralho! Cê não pode ser tão burro... Existem vários tipos de batata! Doce, normal, sei lá, deve ter mais um monte!
-Pera lá, você não sabe e vem querer ser o sabido pra cima de mim? Como você sabe que batata doce é batata também se você não conhece porra nenhuma de batata?
-Por que elas chamam batata! Devem ter a mesma estrutura molecular ou algo do tipo! Que merda! Puta assunto estúpido!
-Mano, se você não sabe, fala que não sabe. Não tem problema. Mas não fica inventando coisa pra não parecer desinformado. Toda vez que você não sabe de alguma coisa você fica puto, xinga e quer mudar de assunto falando que ele é estupido.
-PULTA QUEO PARIU!! Pra que caralho eu vou ficar perdendo meu tempo discutindo sobre uma merda de batata!??? Não vai chegar em nenhum lugar!!
-E se chegar? E se percebermos que batata normal é diferente de batata doce mesmo!?
-VAI TOMAR NO SEU CU!!! Eu já afirmei que elas são diferentes!!! Você que tá falando que a doce não é batata!!
-E por que você não me dá razão já que você não faz a mínima idéia do porque essa merda chama batata doce?!
-VAI SE FOODEEEEEEEERRR!!! Pau no seu cu e no cu dos tubérculos! Pau no cu do Batatinha do Manda Chuva também! Se você falar a palavra "batata" de novo eu vou enfiar a mão na sua cara!!
-Ok, ok, foi mal... caramba!.. não precisa ficar tão irritado! Olha o seu estado por causa duma conversa besta! Se liga! Só estava filosofando sobre um dos assuntos que a maioria da população não sabe responder!
-Bicho... você é muito tosco! Foda-se esse assunto! Por favor!
-Ok. Calma, vamo tomar alguma coisa pra relaxar ok? Tá mais calmo?
-To. Tá passando a raiva.
-Mesmo?
-Mesmo.
-Batata.
-PAFFFF!!!!

terça-feira, abril 11, 2006


Ned gosta de atirar nas pessoas. Não por esporte ou por problemas patológicos ou por raiva da sociedade. Por diversão. É como um evento para ele. Uma vez a cada seis meses ele arma seu rifle de longa distância na janela de um dos seus cinco apartamentos de cobertura, rosqueia o silenciador ao som de Chopin, senta-se confortável na cadeira e passa até cinco horas escolhendo alguém para aparecer no jornal do dia seguinte. Sem padrão, sem motivo e sem deixar nenhum tipo de pista para ser seguida. Várias vezes a causa da morte é atribuida a uma bala perdida, mas Ned não se importa: o que conta é a adrenalina de um disparo perfeito.

Não, ele não tem trauma de guerra. Não foi para o Golfo ou para o Vietnam. Não tente julgá-lo pois você não o conhece. Ele não é louco nem perturbado. Na verdade ele se vê como um aventureiro, pois aquilo trás para ele uma emoção, uma sensação de liberdade que ele jamais conseguiu saborear em outra coisa. E acredite, com seu salário de neuro-cirurgião, Ned já fez de tudo um pouco. Mas nada traz a sensação de estar mais próximo de Deus, de ser Deus. De salvar diversas vidas no hospital durante meses e então levar um par delas por ano. Claro, sem nunca se repetir: um negro rico, um branco pobre, uma criança ruiva, uma secretária, um executivo de alto-escalão. Hoje foi um padre.

Johnathan Stezzi. Servo de Deus por diversos anos. Católico. Culto. Um homem de impecável caráter e dignidade indiscutível. Irmão de Vittorio Stezzi, comerciante que ganhou grande influência quando se casou com Angelica Tornelli, filha de Don Tornelli, um dos mais respeitados chefes de família de Nova York.

Um pedido simples então dá início à prática investigação forense italiana, que pergunta para as pessoas certas, espanca as duvidosas e deleta as erradas. Miguel Roja, também chamado pelo óbvio apelido de Miguelito, irmão do primo de um amigo íntimo do cara da padaria cujo primo foi severamente indagado pelos Tornelli, de vez em quando tem insônia e sai para a sacada para fumar bem de madrugada. Ele não tem certeza, mas acha que ouviu sim o barulho de um disparo silenciado sendo executado da janela de seu vizinho. Mas ele não tem certeza, pois o apartamento vive vazio. Ninguém entra ali por meses. Raramente ele viu alguém entrar para praticar música clássica, carregando a grande maleta do teclado eletrônico.

Três amigos da família entram então no apartamento que vive vazio. Não encontram nada. Nenhuma pista. Nem um fio de cabelo perdido. Sendo assim eles fazem o que é necessário. Dois deles vão embora, um deles fica esperando sua bagagem. Senta no sofá aconchegante, liga o televisor de plasma no seu seriado favorito, coloca os pés na mesinha de centro, acomoda a Beretta ao seu lado e espera, talvez por mais de um ano, uma visita inesperada que, quando chegar, vai ter uma noite muito longa. Muito. Muito longa.

sexta-feira, abril 07, 2006


Acho que nunca tive um sonho tão realista quanto o que eu tive ontem. E não lembro do último sonho tão bom quanto este.

Eu tinha trinta anos. Ou quase isso. Tinha um emprego estável e uma rotina muito fácil de viver. Eu levantava de manhã e ia trabalhar, com meu carro, dirigindo sob o sol, ouvindo música e pensando no que eu faria depois do trabalho. Talvez assistir um filme no cinema. Onde eu ia almoçar? Eu podia escolher entre diversas opções de comida, dentre diversos lugares que as serviam. Todas elas com sabores diferentes e texturas diversas. No meu trabalho eu ficava na frente de um computador, controlando versões de arquivos e criando interfaces para sistemas de internet. Um trabalho trivialíssimo. Fácil. E ainda! Se eu errasse, podia começar de novo e consertar o erro. Quando o trabalho acabava eu tinha horas livres para fazer o que eu bem entendesse. Podia sair a noite e ir dançar, podia me entreter com jogos eletrônicos e contar segredos para um amigo ou então relaxar em casa assistindo tv. Eu vivia nessa rotina simples e confortável durante as minhas semanas. As contas que eu pagava no fim do mês eram sobre as coisas que eu usava, tais como telefone, cartão de crédito, aluguel e energia. Uma vida simples e deliciosamente idiota.

Quando acordei de repente, com o alarme tocando, quase chorei. Queria voltar para o sonho. Quis morrer por um instante, mas a rajada de adrenalina provocada pelo estridente som declarando um iminente ataque põe qualquer um de volta para a realidade. Tive de me conformar que não sou apenas humano e voltar a criar pontos gravitacionais psíquicos de defesa interplanetária para a coletividade. Suspirei. Ninguém pode viver num sonho afinal.

quarta-feira, abril 05, 2006


Agora eu sei o que fazer.

Passei a primeira década como o vento. Sem direção. Sem forma. Sem ser notado. Mas então ele me segurou pelo braço quando tentei tirar o dinheiro dele. Mentira. Não vou romantizar a história. Ele me bateu sem propósito e perguntou o que um rato fazia próximo a sua casa tão limpa. Eu respondi e ele me bateu novamente. E toda vez que eu falava. Aprendi a não falar, por medo. Ele me tornou seu escravo. Fazia tudo o que ele queria. Humilhava-me perante sua filha. Eu apanhava também quando olhava para ela. Chamava por mim com nomes obscenos e me batia sempre que algo saísse do planejado, mesmo que milimétricamente. Eu tinha que tomar dois banhos por dia para não ser chamado de fedido. Se eu me sujasse limpando sua casa, eu apanhava e era jogado na água fria. Então à noite chegava e eu jantava. Comida quente e muito saborosa. Eu podia aguentar o dia todo de sofrimento somente para chegar à tocar naquela comida. Não entendia por que ele fazia aquilo. Não sabia o que pensar. Eu era jovem e inocente.

Um dia percebi que não conversávamos mais. Apenas uma troca de olhares era suficiente para que eu entendesse seus desejos. Eu apanhava se não obedecesse. Mas as surras não doíam mais. Algumas vezes eu nem as sentia. Quando ele percebeu isto, parou de bater e fez o sinal para que eu o acompanhasse. Deslizou para o lado a porta de um dos cômodos onde eu não era autorizado a entrar. Então começou a dançar, lá no centro. Achei graça e sorri. Só acordei na manhã seguinte. Não sei o que me atingiu, mas foi rápido. Muito rápido. Ele insistiu mas dessa vez eu não ri. Imitei, como era a ordem implícita. Eu era jovem e inocente.

Hoje faz duas décadas que eu o conheci. Vinte anos de disciplina, entre razão e emoção e corpo e mente. Hoje eu ví pela primeira vez uma lágrima escorrer de seus olhos. Nem quando me casei com sua filha, em data tão alegre e festiva, ele chorou. Minha princesa. Meu prêmio. Meu amor. Íamos ter um filho juntos. Hoje. Justo hoje. QUando voltei para casa com meu senhor após a meditação matinal. Deslizei a porta de entrada para o lado e lá estava ela. O amor da minha vida. Minha única mulher. Fixada na parede com uma espada atravessando seu abdômen. Presa pelos pulsos com cordas ásperas. Adornando o desenho da serpente na parede, feito com seu próprio sangue. Teve os olhos arrancados em sinônimo de que permanecêssemos cegos ao fato. Hoje. Foi quando ele deixou uma lágrima cair. Tenho certeza que foi apenas uma, acoando ensurdecedora no assoalho de madeira, misturando-se ao barulho do bambuzal raivoso ao vento. Talvez meu senhor devia ter pago aqueles nobres, mas tenho certeza que fez o que era certo. Provavelmente o fez também hoje, quando eu olhei diretamente em seus olhos pela primeira vez depois de tanto tempo. Quando ele viu em mim a sombra de seu ódio. Ele acenou com a cabeça, concedendo permissão.

Anos e anos seguindo seus passos, fazendo somente o que me era ordenado. Não hoje. Caminho por esta estrada acompanhado dos quatro ventos, da espada e da doce imagem dela em minha memória pois assim eu decidi. Sem ódio, sem mágoa, sem saudade. Apenas propósito. E devo tudo isso à ela, meu eterno amor. Não sei como será viver sem seu abraço noturno, seu olhar de carinho, seu cuidado comigo. Mas isso é no futuro.

Agora, eu sei o que fazer.

segunda-feira, abril 03, 2006



Eu me sinto perdido. Desamparado até.
Um turbilhão de pensamentos disconexos me atravessa a mente. Pontigudo. Dolorido. Tudo me incomoda ao ponto de eu não ter mais a certeza se estou são ou a loucura veio me beijar deliciosamente e arrastar-me para o seu mundo. Eu me remexo sozinho, sentindo o suor pegajoso na minha pele aderir à algo que não me deixa ir muito longe. Percebo que estou preso. Alguns dos meus movimentos não correspondem aos comandos do cérebro. Tentáculos quentes me prendem quando tudo o que eu quero é ficar em paz e me sentir livre. Mas quando consigo livrar um braço, o frio que bate nele é ainda pior. Eu penso nela. Para tentar não ficar louco. Eu penso naquela cintura maravilhosa que tive o prazer de segurar com as duas mãos. Penso o quanto era bom mergulhar nos seus lábios e esquecer do mundo, da indecente orgia caótica que impreguina a sociedade. Algo atinge meu estômago com força, arrancando a imagem dela da minha cabeça. Não consigo lembrar do seu rosto! Por que eu não consigo lembrar... meus órgãos se contorcem de dor e eu volto à posição fetal. Deixo escapar um gemido baixo e levo minhas mãos à cabeça, pressionando as têmporas, trêmulo, cerrando os dentes. Algo me destrói por dentro e eu não tenho forças para pará-lo. A besta interior. Suas garras me atravessam o pulmão quando eu tento tossir, produzindo uma gosma espessa na minha boca cujo gosto espalha selvagem pelo meu sistema nervoso. Aquele parasita desce novamente pela minha garganta, rindo de mim, e por onde passa implora para que eu vomite todo o ectoplasma que existe no meu estômago. A falsa escuridão que me envolve não é suficiente para aconchegar-me em seus braços. Não posso enxergar. Tento olhar para minhas mãos mas um jorro ácido, fervilhante, queima meus olhos e faz minha cabeça explodir. Sinto medo, calor, frio, angústia e dor. Quero cortar meus pulsos e deixar a dor fluir vermelha para fora deste receptáculo podre que eu sou. Mas a besta não deixa. Ela urra. De dentro de mim. E o som da fera reverberando pelas minhas veias atinge meu cérebro com força. Enfia suas garras e rasga meu crânio impiedosamente, enquanto grita nos meus ouvidos, esquálida, incansável, em uma repetitiva gargalhada humilhante, tornando-me uma piada maior do que sou. Me arrependo dos meus pecados e mesmo assim ela não para de rir.

CHEGA!
Eu grito em voz alta e estico meus membros com força, soltando-me dos meus grilhões. Abro os olhos e deixo-os queimar. Através de lava e fogo e gelo e dor eu a enxergo e encaro o fundo dos seus olhos vermelhos. Alcanço seu pescoço negro com um salto e o espremo, destruo, gemendo ao tom do ódio puro que flui através dos meus músculos uma última vez. E então ela pára de rir. Volta para dentro de mim, domada. Tudo em mim ainda dói, mas as imagems pararam. Não lembro mais de nada. Não lembro da moça, dos sorrisos, da alegria. Sobra só um mar de saudade e arrependimento. Não há mais o que fazer a não ser voltar para o mundo. Eu despenco de joelhos e me faço perguntas que não sei responder. Um lapso consciente desperta meus poucos sentidos para a única coisa que me resta.

É sexta-feira. Me levanto e vou trabalhar.